Escapando da Dolce Vita
A angústia moderna da busca incessante pelo 'mais' e o paradoxo da felicidade. Cinema e literatura.
“Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada qual à sua maneira.”
A famosa abertura de Anna Karênina, de Tolstoi, não nos revela somente que estamos prestes a conhecer uma história singular de infelicidade familiar. Mais contundentemente, nos estimula a reconhecer um paradoxo da modernidade.
Se temos apenas 2 ou 3 modos possíveis de viver a vida, e sabemos que uma delas tem melhor probabilidade de nos fazer mais persistentemente felizes diante de um mundo sempre repleto de transformações catastróficas — por ter sido testada e confirmada como tal durante alguns séculos —, a decisão de sair ou voltar à “linha reta” da vida familiar (para quem participa do fechado mundo dos cidadãos) não apresenta grandes perturbações.
Já se temos 10000 modos de viver a vida, e não temos a mais remota ideia se o caminho escolhido nos fará felizes, a angústia da melhor escolha sempre estará batendo à porta.
Uma marca central da modernidade é a inquietação, o uneasiness diante de tudo o que a vida oferece. No poema em prosa Le Chambre Double, Baudelaire visualiza um quarto em que consegue quase alcançar um estágio de conforto e paz artístico e corporal (o tempo desaparece, a eternidade reina). Mas uma batida na porta o destrói de imediato. Um Espectro — a impossibilidade de deter um momento de paz estética/prazerosa — na forma de um oficial de justiça, uma amante com suas queixas, as demandas do trabalho — impede qualquer possibilidade de agarrar esse ideal de delícia da vida. Mais interessante do que notar o constante retorno de Baudelaire ao Spleen de Paris (a melancolia da vida moderna), é notar que essa melancolia decorre justamente do contraste com esse ideal inatingível. Esse “mais” da vida, um grande atingimento (artístico, empresarial) que parece sempre possível e sempre escapa entre os dedos.
É interessante comparar a premissa das “comédias de família” hollywoodianas com o ennui que marca o cinema clássico europeu. Nas primeiras, pelo menos antes dos anos 2000, a fórmula era sempre a de uma família padrão (pai, mãe, filhos, casa grande, carro) ou uma família padrão em formação (solteirão conhece solteirona e aceitam replicar os padrões familiares que tanto questionaram) contra a irrupção de fatores que desequilibravam (ou impediam o acontecer) dessa dinâmica. No cinema europeu, persiste a ideia de que não há equilíbrio ou atingimento da felicidade “padrão”; ela nunca chega, as personagens sempre estão caminhando numa corda bamba, por ilhas de satisfação temporárias.
Nenhum filme representa melhor a sensação de que a modernidade “me deve mais”, de que “falta algo”, de que há um mundo lá fora mais brilhante, que escapa às mãos, do que La Dolce Vita, de Fellini. É inexplicável a experiência de assisti-lo do princípio até o fim. É um filme que é muito, é como viver uma vida inteira — não por ter muitos acontecimentos, mas por modelar respostas às mais importantes apreensões existenciais. É uma pena que talvez sua linguagem não ressoe com os jovens de hoje, porque La Dolce Vita é o filme da modernidade. É o filme que elabora a vida de espetáculo que acompanhamos em redes sociais, que clama por mais, elabora a vida de possibilidades dos apps de paquera, que clama por mais. É o filme em que os espíritos da placidez de uma vida padrão de família não conseguem resistir a esses clamores. Clamores que atiram a alma a um abismo, ao vazio de uma sequência de eventos interessantes que mascaram um solitário inferno.
Fellini não necessariamente queria criar um filme moral. Seus filmes parecem mais debates consigo mesmo, como se dissesse (ponho aspas mas não são suas palavras) “isso é o que vejo de meus próprios demônios, mas assim é a vida, ou assim é a minha vida”. Os problemas gerados pela infidelidade, em Julieta dos Espíritos e 8 1/2 são, muito provavelmente, decorrentes de uma luta interior contra seu impulso de cortejar outras mulheres, sabedor dos transtornos causados por essa prática. Mas não como se dissesse “eu entendo, devia parar de fazer isso”; parece mais bem dizer “esses transtornos são brabos, mas como não cortejar outras mulheres? Olha só para elas!”
La Dolce Vita não trata, portanto, de um inferno evitável. É uma estrada a um inferno que, como as redes sociais, não possui bifurcações. Como não usar redes sociais? Como não pensar que, se tal e tal coisa está disponível para quem as quer agarrar, eu não devo agarrar também?
O mundo dos artistas e celebridades, em La Dolce Vita, é como a festa do Marquês d'Andervilliers em Madame Bovary. Uma vez conhecendo a estética daqueles que dedicam a vida para o desfrute dos sentidos, a vida normal parece sempre em falta, sempre menor. Em nossos tempos, isso poderia significar ser um influenciador super-famoso de redes, ou interagir com estes, ser convidado para os podcasts da moda, conhecer os novos restaurantes ou destinos de viagem que estão trending, sair com as pessoas bonitas que publicam suas fotos posadas ao pôr do sol, e por aí vai.
Na cena final de La Dolce Vita, o mais belo encerramento da história do cinema, o protagonista reencontra uma menina que conheceu quando estava relaxado, escrevendo — sonhando. Mas ele não se lembra dela. Não entende o que ela quer. E volta para seu grupo perdidamente concentrados em encontrar qualquer coisa que possam curtir ou de que possam rir.
A vida fútil não apenas é desesperadora, ela é um excesso de desespero. Uma semana vivendo, dia após dia, as risadas sociais de pessoas por quem se tem uma afeição limitada ou nula, as dinâmicas de abusos de hierarquias de poder de quem não se estabeleceu em dinâmicas familiares, é um horror em si e é um extenuante excesso. Faz sentido que existam programas sobre casas grandes, e festas, e tudo isso, porque alimenta a Emma Bovary que mora em cada um de nós, mas basta apagar a TV ou o telefone para retornar à vida real. Quem experimentou na carne essa vivência, ou a visitou em filmes como La Dolce Vita ou A Grande Beleza, sabe que é demais. Fica, porém, a sementinha do mal. O chamado venenoso. Vai ficar aí, nessa vidinha?
Estamos todos, então, condenados a cair nesse fosso infernal de querer mais do que a verdadeira felicidade, a qual todos sabemos que, na verdade, está no amor às pessoas próximas, na conexão familiar, nas coisas simples da vida?
Alguns poderiam dizer que a religião resolve todos esses problemas. É o retorno à religião o que a modernidade precisa, e nela afastamos o inferno das demandas pelo “mais”. Pode ser. Pode ser mesmo, falo em sério. Só pontuaria que: 1) não é difícil encontrar religiosos caindo nesse drama — será que não há competição para influencers evangélicos? 2) como já trabalhei em Estranhos Apegos, “as estruturas do passado foram tudo aquilo que deu causa às estruturas atuais” — ou seja, não vejo a religião como cura se ela está na base das dinâmicas da modernidade. Emma Bovary inicia seus apegos às estéticas e sentimentalismos ajoelhada, rezando.
Queria usar esse espaço para desenvolver uma série de argumentos da filosofia e da psicanálise. Afinal, tudo isso trata do sujeito e o mundo, do fazer-se, do estabelecer dinâmicas entre quem se é, o que se quer e o que nos parece demandado — temas fartamente trabalhados por esses bons pensamentos. O ponto mais simples, é claro, é o do “conhece-te a ti mesmo”, o entendimento e a elaboração dessas dinâmicas na subjetividade de cada um. Para manter esse texto mais curto, contudo, apenas deixarei a questão aberta e oferecerei um caminho dentro do próprio cinema hollywoodiano de apego a padrões.
Assim, talvez minha escolha de obra como “solução moderna” para escapar da Dolce Vita seja um pouco surpreendente: O Diabo Veste Prada. Acho inevitável atravessar o inferno, ou ao menos tangenciá-lo, para encontrar o o outro lado; do contrário, o chamado sempre pode persistir. A protagonista de O Diabo Veste Prada, Andy, mergulha fundo no inferno do “mais” da produção corporativa e da alta sociedade da moda. Poderia seguir ali, chafurdando, e tornar-se uma nova Miranda. Mas num dos raros eventos da vida em que sentimos o impacto da subjetividade, o impacto do “não podia ter agido diferente e por isso me sinto livre”, Andy sai do outro lado. Claro, não significa que a personagem encontrou a resposta final, e que não poderia existir uma sequência (espero que não exista) em que ela volta com tudo para os chamados da indústria, ou para outros chamados. O importante é que, no final da obra, Andy tem um encontro consigo, como o encontro entre Marcello e a menina, no final de La Dolce Vita. E ela escolhe a si mesma.